quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O RUIR DE UM SONHO

Cresci numa comunidade eclesial que me ensinou a ser adulta na fé e a assumir as minhas responsabilidades dentro da Igreja. Mas ser adulta implica saber e poder escolher, ter uma palavra em momentos de decisão.
Passaram os anos, mais de quarenta, e eis que o bispo da minha diocese decide tomar uma atitude que vai destruir a minha comunidade. Ele não sabe o alcance da sua decisão, chegou há pouco à cidade, não conhece o trabalho realizado ao longo de todos estes anos.
Na comunidade foi a desolação total. Há lágrimas, há revolta, há espanto, há incredulidade. Mas talvez não esteja tudo perdido. E habituados a participar, a tomar decisões, os membros mais activos e empenhados decidem escrever uma carta ao seu bispo, assinada por muitas dezenas de crentes, onde expõem as suas razões, explicam a situação da comunidade, a sua vitalidade e os perigos que para ela advém se a decisão do bispo for para a frente. E ficam na esperança de que o seu bispo haja por bem recebê-los para trocar ideias, razões, explicações. A comunidade quer saber o que se passou, melhor, acha-se no direito de ouvir uma justificação. E tem esperança de conseguir reverter a situação.
É verdade que algum tempo depois, o bispo, educadamente, envia uma carta de resposta onde diz aquilo que a comunidade finalmente já sabia. Nada mais. Não espreita sequer uma hipótese de diálogo.
Depois destes tristes acontecimentos, fica-me na alma um sabor amargo. Educada a acreditar que a Igreja dos crentes é parte activa nos destinos da Igreja, que, após séculos de infantilismo, os cristãos hoje, porque mais conscientes e responsáveis, têm voz na Igreja, descubro da pior maneira que tudo isso é mentira. O poder absoluto está na hierarquia, aos cristãos não lhes é dado o direito ao diálogo e estes não têm sequer voz para defender a sua comunidade, comunidade onde cresceram para a fé, onde se fizeram cristãos adultos, onde conjuntamente participaram em acções em prol da comunidade humana que os cerca, onde desenvolveram a consciência do que é ser cristão.
Porque o bispo o quis e decidiu, o futuro desta comunidade está seriamente ameaçado e a consciência das pessoas profundamente perturbada.
Afinal os crentes não passam de uma massa anónima, sem voz, que nem sobre a sua própria comunidade têm possibilidade de interferir. Acatar religiosamente os ditames do poder instituído é o que lhes resta. Obedecer é o que lhes sobra.
Fico a pensar até que ponto o desânimo que esta tomada de consciência acarreta pode favorecer o afastamento da vida eclesial daqueles que, talvez com uma fé mais tíbia, começam a sentir-se “mal situados” numa Igreja que os desilude.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

UM RASGÃO NA CAMISA

Nestas férias tive um neto a passar uns dias comigo. Naturalmente que tomei a meu cargo tratar das roupas dele. E foi justamente quando as dobrava para guardar na gaveta que descobri uma t-shirt ainda em muito bom estado, mas com um grande rasgão em L no meio das costas. “ Que pena!”, pensei e vai daí pus-me a cozer o rasgão. Confesso que me esforcei para que ficasse obra perfeita. Perfeita não terá ficado realmente, mas mesmo assim ficou bastante bem.
No fim da semana o meu neto partiu para um acampamento levando com ele uma mochila cheia de roupa no meio da qual, como vim a constatar mais tarde, embarcou a famigerada t-shirt. No regresso do acampamento ele voltou para a minha casa. Foi então que uma certa tarde ele me interpelou.
- Avó, foste tu que cozeste a minha t-shirt?
- Fui. Porquê?
Então ele meio encabulado foi dizendo:
- Estava muito bem cozida. Mas, sabes, eu gostava mais dela rasgada:
- Ai é? - espantei-me eu.
- É que tem uma espécie de significado.
Sorri por dentro e pensei para comigo “ Estás muito longe destes adolescentes. O teu mundo é outro.”

E é mesmo. Como posso querer avaliar os seus costumes, os seus gostos, a sua moral se entre mim e eles medeiam décadas? Por muito que me esforce por me manter actual, não há dúvida que os parâmetros são outros e as minhas avaliações são forçosamente diferentes das deles. Isso provoca por vezes um certo desconforto, quiçá alguma injustiça. E então agora que tudo mudo a uma velocidade estonteante! Ou será que os adultos “do meu tempo” experimentaram as mesmas dificuldades? A mim parece-me que nessa altura tudo mudava muito mais devagar do que agora e que não havia as discrepâncias que existem hoje entre o pensar dos velhos e o pensar dos mais novos. Mas se calhar é apenas um erro de perspectiva.
Soluções? Nenhumas. Salvo aprender a relativizar valores sociais que são hoje diferentes dos de ontem e serão com certeza diferentes dos de amanhã.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

AMIGOS

Era a última consulta da manhã. A mulher aguardava ansiosamente pela sua vez na perspectiva de saber o resultado da biopsia. Seria uma sentença de vida ou de morte. Da certeza de poder viver mais uns anos ou de uma morte anunciada para daí a pouco.

Quando saiu do consultório, já não havia lugar para a esperança: alguns meses de vida, talvez um ano. Quisera vir sozinha, sentia-se forte para receber a notícia fosse ela qual fosse. Se fosse uma notícia de vida teria tempo para festejar com os amigos. No caso contrário não queria testemunhas do seu desalento. Até porque não sabia como iria reagir: iria chorar, gritar, revoltar-se, vomitar…?

Mas ficou incrédula, como se não lhe dissesse respeito o que a médica ia explicando, cheia de cautelas, deixando escapar fiapos de esperança de uma morte serena. E depois havia sempre milagres, não era? Até conhecia um caso de um doente….

Nessa noite, passado o primeiro estupor, sem conseguir ainda chorar, telefonou à pessoa com quem há muitos anos partilhava dores e alegrias. “Vou já para aí”, ouviu do outro lado do telefone. “Não, espera. Já é tarde… “ “Nem penses. Temos muito que conversar. Até já” E o telefone fez clic.

A presença da amiga desencadeou uma tempestade e pela primeira vez desde essa manhã a mulher chorou copiosamente. Depois sentaram-se no sofá e a mulher desabafou toda a sua amargura e angústia represada durante as últimas semanas desde que soubera que era provavelmente uma condenada à morte. A amiga ouvia. Ouvia sem interromper. Até que o cansaço trouxe alguma calma à mulher. Depois naturalmente começaram a recordar. E até houve momentos para sorrir. “Queres que durma cá?” “Não é preciso. Já estou calma e acho que vou conseguir dormir”. “Então amanhã encontramo-nos. Certo?”

Nos dias seguintes outras amigas foram telefonando, marcando encontros e aos poucos uma teia fraterna foi-a envolvendo, aconchegando-a, abrandando a dor, aliviando-a do medo. Meses passaram. E quando se despediu da vida e teve de partir sozinha tinha os amigos a dizer-lhe adeus. Não podemos ir contigo, mas a tua recordação vai ficar connosco, o teu rosto há-de visitar-nos, a tua presença não vai desaparecer.

A mulher sorria tenuamente. Talvez o último sorriso.” Sabia que as palavras e gestos amigos são um afago carinhoso quando estamos felizes, mas a minha doença e a minha morte mostraram-me que a amizade é também um véu de doçura que nos aconchega no sofrimento. Obrigada.”

domingo, 5 de junho de 2011

MENINOS DE ONTUPAIA

Estamos a meio da manhã. O céu despeja cascatas de água no terreiro arenoso cheio de árvores frondosas, - o recreio da escola. Ao longe ribombam os trovões. É mais uma tempestade tropical. A temperatura, acima dos 30 graus, vai agora baixar. No recreio, alguns alunos despem a roupa e deliciam-se com a chuva que lhes encharca os corpos. São crianças bonitas de grandes olhos negros, pestanas reviradas. Mulheres do bairro ao lado da escola vêm com canecos e baldes apanhar a água que cai em catadupas das caleiras. É que aqui em Ontupaia a água fica longe e a que sai da torneira pública é preciso pagar. E as pessoas são muito pobres.
Andei estas semanas a percorrer as salas de aula contando histórias. Agora todos me conhecem e vêm ter comigo, estendem-me a mão, chegam-se para uma carícia. “Professora gostei muito da sua história. Conte mais”. São crianças meigas, afáveis, sempre com um grande sorriso a mostrar os dentes imaculadamente brancos. Talvez porque até há pouco tempo não tinham nem cadernos nem lápis de cor, adoram este material que veio de Portugal e, se não estamos atentos, surripiam-nos com o maior à vontade. A gente ralha, diz “ não empresto mais lápis nem folhas” e a maioria lá acaba por entregar o que escondera nos sacos ou dentro da camisa.
São meninos que não têm quase nada, em muitos casos nem mesmo para comer. “Matabichaste?”, ou seja, tomaste o pequeno almoço?” “Não”. “E ontem, jantaste?”Também não”. E alguns adormecem nas aulas para enganar a fome.
Estes são os meninos da escola de Ontupaia que chegam na primeira classe sem falar Português e que, aos poucos, vão aprendendo a nossa língua, porque nas escolas moçambicanas a língua obrigatória é mesmo o Português. Mas isso resulta num grande esforço e num fraco aproveitamento na maioria dos casos.
São também estes meninos que, no seu entusiasmo, quase nos arrancam das mãos os livros que trouxemos de Portugal (antes não havia livros cá na escola para além dos compêndios que o estado fornece e que não chegam sequer para todos). Quando não têm aulas juntam-se em grupo e pedem livros. Querem ver as figuras e os mais velhinhos esforçam-se por ler, alguns soletrando apenas.

A cada passo dou comigo a comparar o que falta a estes meninos e o entusiasmo com que aproveitam aquilo que se lhes dá, com as nossas crianças portuguesas que têm tudo e se interessam tão pouco por aquilo que têm. Não há dúvida que ter demais inibe o gosto pela procura, diminui a capacidade de apreciar o que a vida nos dá. Mas não ter nada é igualmente mau.
Agora que estamos no tempo da globalização talvez seja importante encontrar caminhos para uma mais justa e equilibrada distribuição dos recursos que superabundam num lado do globo e estão ausentes na maior parte do mundo.